Das sociedades e dos Herdeiros

Algumas alterações legislativas que, supostamente, deveriam vir para
melhorar o cenário jurídico atual, acabam por criar problemas gigantescos e desnecessários.
E o nem tão novo Código de Processo Civil – CPC (de 2.015), no tocante ao direito
societário, gerou um impasse terrível para os incautos, principalmente em casos de
falecimento de sócios.

Pelo Princípio da Saisine (art. 1.784 do Código Civil – CC), com o
falecimento de uma pessoa, os bens que compõem a sua herança são automaticamente
transmitidos aos herdeiros e legatários. Mas isso não se aplica, necessariamente, ao direito
sobre as cotas sociais que o falecido possuía.

De acordo com o inciso II do artigo 1.028 desse Código (de 2.002), é
possível que os sócios remanescentes recusem os herdeiros, “liquidando” a participação
societária que caberia aos mesmos, que, pela sistemática de avaliação formal (geração de
caixa), quase sempre resulta em valor ínfimo.

E, por essa previsão legal, dorme-se aguardando a herança (cotas) e, com
o falecimento, acorda-se praticamente sem patrimônio (em razão das baixas avaliações das
cotas liquidadas), perdendo os herdeiros a possível condição de sócios.

Para que se evitasse isso, passou a ser adotado, nos contratos sociais, a
previsão do inciso I desse artigo, fazendo constar dos mesmos, expressamente, que os
sócios seriam obrigados a admitir os herdeiros do sócio falecido. E isso foi acatado pelos
Tribunais, de modo que nenhum questionamento havia sobre isso até então.

Contudo, pelo texto do inciso III do artigo 600 do atual CPC (lei
posterior), poderão os sócios remanescentes recusar os herdeiros na sociedade, ainda que
esse fato esteja previsto no contrato social.

Dito de outra forma, alterou-se o texto legal sobre a matéria, o que se
depreende do previsto no §1º, do artigo 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro (revogação tácita).

E isso também significa dizer que, com a possibilidade da recusa dos
herdeiros pelos sócios remanescentes, inicia-se um processo judicial de dissolução parcial
de sociedade que, num cenário otimista, durará ao menos cinco anos e, no outro, mais de
dez, para que, somente ao final, se inicie a apuração do crédito que caberá aos herdeiros
que, enquanto isso, ficam sem nada.

Se, por óbvio, essa previsão legal parece ser por demais estapafúrdia (e o
é, como também é grande parte das mudanças sobre dissolução de sociedade do novo
CPC), o fato é que já existem diretrizes registrais para a implementação dessa mudança
deletéria.

O Tópico 4.5 do Manual de Registro de Sociedade Limitada, aprovado
pela Normativa nº 8.111/2.020, do Departamento Nacional de Registro Empresarial e
Integração (DREI), com redação conferida pela Instrução Normativa nº 11.222/2.0222 do
mesmo DREI, menciona que, ainda que exista previsão no contrato social, de admissão
dos herdeiros do sócio falecido, poderão os sócios remanescentes optar pela não aceitação
desses últimos, mediante remuneração das cotas do falecido, nos termos acima.

E ainda, caso, no Judiciário, se convalide essa posição, nenhum valor, a
título de dividendos, terão os herdeiros após o falecimento, em razão do termo de fixação
da dissolução parcial (balanço corte a ser feito na data do falecimento), tendo os herdeiros
que aguardar o pagamento do valor das cotas sociais ao final do processo – nunca
satisfatório.

E por mais que haja muitas vozes argumentando que essa situação seja
absurda e inaplicável, e que o CPC versa sobre direito formal (não podendo alterar direito
material previsto no Código Civil), ou que o texto está mal escrito, o fato é que não existe

consenso sobre o tema e, muito menos, posições sólidas de Tribunais sobre esse impasse
grotesco. E o STJ ainda levará anos para dispor sobre essa contraposição entre leis.
Enquanto isso, portas abertas para que múltiplas confusões venham a
surgir. E, como sempre, a inevitável morosidade dos processos conta a favor dos sócios
remanescentes, ficando os herdeiros a “ver navios” por incontáveis anos, ou tendo que se
submeter ao sufocamento financeiro promovido pelos sócios remanescentes.

Solução? Enquanto não se sabe o final da história, a doação das cotas
(registrada no contrato social) com reserva de usufruto vitalício resolve o problema. Ou
converter-se a sociedade limitada em anônima fechada, onde essa regra é inaplicável (por
mais dantesco que possa parecer haver duas regras distintas, para modalidades societárias
tão similares).

Situações como essa trazem à tona a frase de Bernard Shaw, de que
“todas as profissões são conspirações contra os leigos”. E aos que operam no direito, fica o
desabafo do saudoso jurista Alfredo Becker, frente a situações jurídicas sem sentido,
quando dizia que: “Entre o direito e a abóbora, eu optei pela abóbora”.

Roberto de Mello Severo é advogado.

Das decisões absurdas e seus efeitos

Goste ou desgoste de Olavo de Carvalho, mas o fato é que é dele uma frase que, certamente, abrange grande parte dos membros dos dois lados: – “O imbecil fica indignado por qualquer coisa. Mas quando o imbecil tem um justo motivo para ficar indignado, sua reação é tão absurda, que ele se torna o errado da história”.

A guerra absurdamente defenestrada contra a Ucrânia por Putin, ao menos no mundo ocidental, guarda unânime sentimento de abjeção. No entanto, como em toda guerra, surgem efeitos reflexos que, nem sempre, são muito elogiáveis.

Um deles é a busca pela censura declarada pela arte russa, que nada tem a ver com a guerra. E a mesma não vem apenas das “grandes mentes” que habitam o facebook e o twitter, mas de grandes centros culturais e até de universidades.

A Universidade de Milão, recentemente, cancelou um curso sobre Dostoiévski. Indicar a leitura de Gogol ou Tolstói, entre outros, virou ofensa. A Ópera da Polônia cancelou a apresentação de Boris Godunov, de Mussorgski. Tchaikóvski, Schostakovitch, Stravinsky, Prokofiev e Rachmaninoff estão praticamente banidos em todos os lugares, inclusive em rádios.

E o que eles fizeram? São aliados de Putin? Não são, porque já estão todos mortos. E a maioria dos acima citados, vivos estivessem, estariam presos hoje se pisassem na Rússia de Putin. Aliás, pelo nível cultural de Putin, ele deve até rir e apoiar esse boicote, torcendo para que todos esses sejam esquecidos.

Músicos russos que moram há décadas fora da Rússia estão desempregados. Bolsas de estudo foram canceladas. E fica a indagação: – racionalmente, de que forma esse boicote irá ajudar a Ucrânia?

Aos críticos de plantão, muitos deles que sequer leram um parágrafo do Machado de Assis russo (Dostoiévski), ignoram que o mesmo ficou preso na Sibéria por quatro anos – por se opor à oligarquia russa da época. Schostakovitch foi perseguido e teve sua obra banida por Stálin.

Tchaikóvski, que tinha origem ucraniana (tchaika é uma ave da Ucrânia), já estava banido na Rússia há décadas por ser homossexual. Recentemente, Putin o “indultou” post mortem – como se isso o tornasse benevolente. E agora, o banimos novamente, sob ares de quem faz justiça. A ignorância é tamanha que se esquece que Gogol era ucraniano, tendo apenas morado em São Petersburgo. 

Mas ainda que russos fossem, porque sua obra deve pagar pelos crimes de um grupo? O que se ganha, culturalmente, por essa obnubilação coletiva? Até mesmo o Russian Tea Room de Nova Iorque, que de russo só tem o nome (pertence a norte-americanos), está às moscas. E até o infeliz strognoff está banido de muitos restaurantes.

O fato é que temos a necessidade atávica de condenar, de agredir publicamente. E isso, em guerras, é contumaz. Vivemos uma espécie de novo “macarthismo”. A perseguição é nossa companheira.

Enquanto muitos criticavam os campos de concentração nazistas, os EUA colocaram 11 mil cidadãos norte-americanos em um “internato” (neologismo para campo de concentração – internment camps), tão somente porque tinham ascendência germânica. Um deles ficou “internado” até 1.948 – três anos após o fim da guerra.

E fez o mesmo com norte-americanos de ascendência japonesa, que nada tinham a ver com a guerra. A propósito do Japão, o escritor japonês Haruki Murakami, recentemente, a pretexto da guerra contra a Ucrânia, colocou músicas específicas em seu programa de rádio, como forma de reforçar o sentimento antiguerra, afirmando que: “A música tem o poder de parar a guerra? Infelizmente não. Mas tem o poder de fazer os ouvintes acreditarem que a guerra é algo que devemos parar”.

A música de Wagner, em muitos lugares e por muito tempo, ficou proibida (não mais). Mas ele relativamente mereceu, seja porque era um declarado antissemita, seja porque suas óperas são, em certos momentos, um porre.

No mais, não se sintam mal por compartilhar “Crime e Castigo” e “O Idiota” de Dostoiévski (você não estará sendo um homônimo fazendo isso). Leia “Anna Karenina” de Tolstói. Coma sem culpa seu strognoff – até mesmo porque você está comendo qualquer coisa, menos stroganov (a receita é outra e vai pepino em conserva – não tem nada a ver com seu prato). O faça ouvindo o Conserto n. 02 para Piano de Rachmaninoff, e você será muito feliz. E mire suas preces para o povo ucraniano.

Àqueles que insistem em boicotar obras que pertencem à humanidade, e não à Rússia, o oitavo círculo do inferno de Dante, que é bem mais movimentado que o de John Milton, está reservado para dois grupos de pessoas: – para os corruptos e déspotas como Putin, e para o outro grupo no qual, tenha certeza, você está inserido.

Por Roberto de Mello Severo

Folha de Londrina, 25 de março de 2.022.

“Timeo Danaos et Dona Ferentes” O Pix e seu correto uso

O pix, criado em 2.020, já superou, em muito, o uso de boletos bancários, transferências DOC/TED/TEC, sendo que apenas em maio deste ano foram 649,1 milhões de transações, frente a 126 milhões de transferências tradicionais, o que representa uma efetiva e real ameaça a bancos tradicionais, empresas de cartão e de máquinas de cartão.

Pessoas físicas são isentas de custos nessa modalidade de operação, enquanto pessoas jurídicas pagam taxa menor que as transferências tradicionais.

No entanto, é importante se compreender, até futura regulamentação, em que circunstâncias essa modalidade de operação deve ser adotada, para se evitar dissabores com tributações indevidas, bem como para evitar-se que a Receita Federal se ocupe com situações desnecessárias.

O que a população ainda não compreendeu é que o PIX, diversamente das demais operações financeiras de transferência de recursos, possui uma base única de dados, que é controlada pelo Governo – via Banco Central, enquanto as demais transações ainda são controladas diretamente pelas instituições financeiras (porquanto passíveis, em certas formas, de acesso pelo Estado e fiscalizadas pelo mesmo Banco Central).

Se acreditarmos que o Governo nos possibilitou uma ferramenta gratuita para podermos, a qualquer momento do dia, movimentar valores com trânsito imediato, e que isso se deu porque o Governo quer facilitar a vida dos brasileiros, talvez estejamos sendo inocentes demais.

O risco do acesso indiscriminado à nossa intimidade financeira é termos que ficar explicando situações desnecessárias, e sermos indevidamente mapeados por nossos hábitos financeiros que, nem sempre, representam receita tributável.

Logo, utilizar-se do pix para trânsito de valores (recebimentos e pagamentos), os quais não têm como destinatário final a pessoa que os recebe e os transfere, a exemplo de uso da conta da pessoa física para operações de pessoas jurídicas como as MEI, poderá ser equivocadamente interpretado como receita tributável, de modo que, ainda que mais custosas, para essas modalidades de operação é aconselhável manter-se o uso das transferências tradicionais.

Recentemente, o STF, no julgamento do RE 855.649, recepcionou o que se denominou de “depósito de origem não comprovada” para tributar o contribuinte pelo imposto de renda.

A definição acerca da possibilidade da quebra do sigilo bancário, para fins de tributação e ou para fins penais, tem sido uma verdadeira montanha russa. Diversos são o Acórdãos do STJ e do STF permitindo e coibindo esse uso.

O STJ, no julgamento do HC nº 42.332/PR, afirmou que, para fins penais, a quebra do sigilo bancário deveria ser precedida de decisão judicial fundamentada no inciso XII do artigo 5º, e do inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, de modo que esses dados bancários, sem ordem judicial prévia de quebra, seriam inválidos.

Já o STF, no julgamento do RHC nº 121.429, afastou a ilicitude da quebra de sigilo bancário para fins de ação penal, diversamente do que proferiu o STJ. E isso foi ainda replicado pelo próprio STF, no julgamento do AgRg em REsp 1.371.042 SP, que entendeu pela validade de requisições bancárias pelo Fisco, mesmo sem autorização judicial, para propositura de ação penal.

O fato é que posições irregulares devem, sempre, dar ensejo à atuação do Fisco. Mas e quanto àquelas regulares, que possam ser mal compreendidas pelo Fisco? Porque, saibam, com o pix, seu sigilo bancário ainda existe, mas agora está administrado pelo Governo que, coincidentemente, gere também a Receita Federal.

Como visto, essa ferramenta é extremamente importante e realmente alterou, de forma profunda, a movimentação financeira, lembrando que nosso sistema financeiro, há muito, é exemplo de eficiência para outros países. Cabe tão somente a nós fazermos bom uso dela, e entendermos que, em determinadas situações, as vetustas formas de transferências trarão melhor resultado, impedindo interpretações indevidas.

Quando Virgílio escreveu Eneida no século I A.C (II, 49), referindo-se ao Cavalo de Tróia deixado, citou: – “tenho medo dos Gregos, mesmo quando nos oferecem presentes” (“Timeo Danaos et Dona Ferentes”). As entrelinhas estão claras.

Por Roberto de Mello Severo

Folha de Londrina, 26 de julho de 2.021.

Da dissolução parcial de sociedade no novo CPC – retrocesso.

De como o inciso V do art. 600 do CPC anula décadas de Jurisprudência e cria prejuízo irreversível aos minoritários.

Durante 76 anos, os processos judiciais de dissolução de sociedade, na lacuna do Código de Processo Civil de 1.973, foram guiados pelas proposições normativas consubstanciadas nos artigos 655 a 674 do Decreto-Lei nº 1.608/1.939 (antigo CPC de 1.939). Antes ainda as diretivas eram conferidas pelos artigos 335 e 336 do da Lei nº 556/1.850 (Código Comercial).

A possibilidade de dissolução era também reforçada pelo artigo 7º do Decreto nº 3.708, de 1.919, ainda em vigor, quando preconiza a possibilidade de exclusão do sócio que se apresente dissonante do objeto social.

Já em 1.976, com a edição da Lei das Sociedades Anônimas, seu artigo 206 reforçou a ideia da possibilidade da dissolução, contando ainda com a explanação da Exposição de Motivos dessa mesma Lei, que traz uma entonação de sobreposição da sociedade sobre seus sócios, mencionando que “há muito a sociedade anônima deixou de ser um contrato de efeitos limitados para seus poucos participantes: é uma instituição que concerne a toda economia do País, ao crédito público, cujo funcionamento tem que estar sob o controle fiscalizador e o comando econômico das autoridades governamentais”.

Paralelamente, porquanto nossa legislação, à época, fosse relativamente tímida sobre a matéria, os artigos 2.292 a 2.290 do Código Civil italiano de 1.942 (que se mantiveram inalterados após a reforma do Código em 2.020) davam orientação analítica do caminho a ser adotado, ressaltando que já na redação de 1.942, nos artigos 2.284 a 2.290, havia a previsão expressa da dissolução da sociedade com relação a um sócio apenas*, algo que ainda não estava contemplado em nosso organograma legal e nem em nossa Jurisprudência.

Ausente legislação pátria específica sobre a possibilidade da dissolução parcial de sociedade, começaram os Tribunais, vagarosamente, a recepcionar essa possibilidade, principalmente no início da década de 80**, fato que se consolidou nos anos ulteriores, não tendo ocorrido, antes do advento do Código de Processo Civil de 2.015, maiores controvérsias a esse respeito, de modo que aceita estava a possibilidade da dissolução parcial da sociedade.

Não obstante a sedimentação sob esse aspecto, mais especificamente sobre a possibilidade da dissolução parcial da sociedade em relação a um ou parte dos sócios, passou a Jurisprudência a debater-se, relativamente à dissolução parcial de sociedade, com tema mais espinhoso, dizente à legitimação passiva e ativa nessa modalidade de processo. 

E aí reside não apenas a enorme confusão que perdura até a presente data, sob vários aspectos, bem como o enorme desserviço existente com a edição do texto do artigo 600 do atual CPC, mais especificamente em seu inciso V, que estabelece a legitimidade ativa exclusiva da sociedade, para propositura de ação de dissolução parcial.

A propósito da Jurisprudência e antes de se analisar o impacto dessa alteração, havia verdadeira anarquia decisória sobre a formatação da cumulação subjetiva, fosse ela ativa e ou passiva em feitos de dissolução parcial, como havia debate sobre a necessidade de formação do litisconsórcio em ambas as posições, principalmente, como lembra Cândido Dinamarco***, no eterno impasse de se lidar com eventual litisconsórcio ativo necessário.

Deve-se registrar que, relativamente à legitimidade ativa na ação de dissolução parcial de sociedade, em casos de sócio que exerceu o direito de retirada/recesso, e de sócio excluído, nunca houve dissenso sobre essa possibilidade, o que resta expresso nos incisos IV e VI do artigo 600 do atual CPC.

O problema sempre residiu na eventual formação de litisconsórcio passivo ou ativo, nas hipóteses de propositura forçada de exclusão de sócio****, nas seguintes formas (ressaltando-se que essa problemática se mostrava anterior à edição do novo CPC):

  1. Tendo ocorrido reunião/assembleia de sócios, deliberando-se pela exclusão de um ou mais sócios, a ação deverá ser proposta em litisconsórcio ativo pela sociedade e pelos sócios que votaram positivamente pela deliberação?
  2. Ou, na hipótese acima, o polo ativo deve ser formado exclusivamente pelos sócios que votaram positivamente pela deliberação, e o polo passivo deve ser formado exclusivamente pelo sócio em via de exclusão?
  3. Ou ainda na hipótese acima, a legitimação ativa é dos sócios que votaram positivamente pela deliberação, e o polo passivo deverá ser formado pelo sócio em via de exclusão e pela sociedade?
  4. Havendo sócios que não estão em vias de exclusão e que votaram contra a proposta de dissolução parcial (portanto vencidos), devem os mesmos compor o polo passivo, por litisconsórcio necessário? E qual seria a posição de sócios que exerceram direito de abstenção de voto?
  5. Na hipótese de não aprovação da dissolução pela maioria do capital votante, o sócio proponente, que restou vencido, poderá propor a ação de dissolução parcial (ut singuli), sendo o polo passivo formado pelo sócio em vias de exclusão? Ou o polo passivo deverá ser formado pelo sócio em vias de exclusão e pelos demais sócios? Ou por todos os demais e a sociedade?
  6. Em qualquer das hipóteses, se reconhecido litisconsórcio necessário em qualquer dos polos, poderá haver limitação do litisconsórcio (mesmo não sendo facultativo), quando houver número exacerbado de sócios (vide §1º do artigo 113 do atual CPC)?
  7. Não se reconhecendo litisconsórcio necessário, em caso de limitação imposta pelo Juízo, poderão os demais sócios atuarem como assistentes?
  8. E ainda, em não se reconhecendo litisconsórcio necessário, seria a decisão judicial oponível aos sócios que desconheciam o processo? 
  9. Não haveria, na hipótese acima, inobservância do artigo 506***** do CPC, considerando-se que eventual absorção das cotas/ações por tesouraria da empresa projetaria efeitos aos seus sócios, estando atingidos por decisão de processo do qual não fizeram parte?

O curioso frente às indagações acima é que, nos últimos quase quarenta anos de Jurisprudência, tivemos decisões em praticamente todos os sentidos, o que demonstra a completa ausência de compreensão sobre a matéria e a insegurança a que fomos submetidos por tanto tempo.

Relativamente à doutrina, a questão da legitimidade em processos de dissolução de sociedade, até a edição do novo CPC, sempre foi completamente destoante, o que foi bem lembrado por José Marcelo Martins Proença******, que cita Modesto Carvalhosa no sentido de que “A iniciativa da exclusão judicial de sócio é conferida pela lei aos demais sócios. Note-se, porém, que isso não quer dizer que os sócios terão legitimidade para a propositura da ação de exclusão de sócio, pois à sociedade é dado excluir judicialmente o sócio de seu corpo social”.

Diametralmente oposta é a conclusão de Priscila M. P. Corrêa da Fonseca******* e de Adalberto Simão Filho********, no sentido de que deve a sociedade fazer parte do processo como litisconsorte, seja de forma ativa ou passiva – dependendo da circunstância posta em debate, sendo também os sócios litisconsortes. E nessa dissidência reside um importante hiato, que será abordado na sequência.

E o próprio José Marcelo Martins Proença********* alinha-se à posição de Modesto Carvalhosa acima referida, no sentido de que a exclusão deverá ter como polo ativo apenas a sociedade, mas lembrando posição contrária de outros doutrinadores, citando que: 

“Fábio Ulhôa********** e Pereira Calças*********** defendem que a decisão pela exclusão do sócio inadimplente ou desleal com base no art. 1.030 do Código Civil deve ser efetivada por meio da ação de dissolução parcial da sociedade, tendo no polo ativo o litisconsórcio entre os sócios que assim deliberaram e a sociedade. Em que pese as posições doutrinárias e jurisprudenciais em contrário, entendemos que na hipótese de expulsão judicial de sócio com base no art. 1030 do Código Civil, compete à sociedade, e somente ela, a propositura da ação de exclusão judicial do sócio inadimplente ou desleal.”

A despeito do direito material em discussão, toda tentativa de interpretar o tema sob a óptica desse mesmo direito material, como forma de compreensão da legitimação, será falha, por um fato básico: – essa questão é estritamente processual, e tão somente sob o viés do direito processual pode ser interpretada.

Toda vez que se buscar debater a legitimação passiva e ou ativa nos processos judiciais de dissolução parcial de sociedades, tendo como base exclusiva o prospecto do direito material em discussão, as chances de erro serão enormes.

Prova disso está também na cornucópia que gerou decisões absolutamente díspares entre si – até dentro de um mesmo Tribunal, o que tornou o debate sobre a legitimação nos processos em trâmite uma literal questão de sorteio. A Câmara/Turma competente seria o divisor de águas sobre qual seria a solução dada, e não a lógica jurídica que deveria ser aplicada.

O TJPR************ possuía entendimento de que “A maioria dos sócios é que tem legitimidade para requerer a exclusão de outro sócio, e não a sociedade”, enquanto, na mesma época, diversa era a posição do TJRS*************, no sentido de que o polo ativo deveria ser composto pela sociedade e pelo sócio remanescente. Já o TJRJ************** entendia que a sociedade deveria compor o polo passivo, juntamente com o sócio em vias de exclusão.

No TJSP há opções para todas as teses***************. Basta escolher a que melhor lhe aprouver, que se terá respaldo de precedente para absolutamente todas as hipóteses. Há decisões determinando o litisconsórcio ativo com a inserção da sociedade, há decisões entendendo que a sociedade deve integrar o polo passivo, e há ainda decisões no sentido de que a sociedade não deve integrar polo algum****************.

Os precedentes do TJSP lembram Groucho Marx, que já dizia: – “Estes são os meus princípios. Se você não gosta deles, eu tenho outros”.

E o STJ não foge à regra. Em dado momento afirma que a sociedade possui legitimidade passiva, para, logo após, voltar atrás e afirmar que a sociedade não possui legitimidade passiva***************** em litisconsórcio com os demais sócios****************** e, na sequência, afirmar que sequer litisconsórcio passivo seria possível, sendo apenas a sociedade a legitimada passiva*******************, e não os demais sócios.

Não obstante a barafunda que a doutrina e a Jurisprudência se mostraram até a presente data, é fato que o STJ, seguido pela maioria dos Tribunais de 2º Grau, alinharam-se na posição de que a sociedade deve ser litisconsorte ativo quando houver deliberação positiva, havendo ainda a possibilidade de que apenas a sociedade proponha a ação em face do sócio a ser excluído.

Sendo a ação proposta pelo sócio retirante, também deverá a sociedade compor o polo passivo. E note-se que foram décadas para que isso pudesse ser implementado, para que se trouxesse uma mínima segurança ao Jurisdicionado, bem como em respeito à aplicação da regra do artigo 506 do CPC, que veda que decisões judiciais sejam projetadas sobre quem não fez parte do processo.

E após cerca de quatro décadas de debate, o que trouxe o novo CPC de positivo? Com exceção do inciso V do seu artigo 600, apenas repetiu o que a Jurisprudência já havia consolidado. Mas quando o legislador estabeleceu que cabe exclusivamente à sociedade a propositura da ação de dissolução – com exclusão de sócio, retirou do minoritário o direito de buscar a expurga do sócio que é deletério à sociedade.

Note-se que a possibilidade de o sócio majoritário ser excluído, antes da edição do novo CPC, já tinha sido inclusive recepcionada pela Jurisprudência, tendo sido adotada pelo STJ em 2.017, através do julgamento do REsp nº 1.653.421.

Assim, convocada a assembleia onde deverá ocorrer a deliberação acerca da exclusão judicial do sócio******************** (que, antes do novo CPC, era dispensável nas hipóteses de sócios com participação igualitária e em outras situações*********************), impedido de votar o majoritário, e havendo outros votos contrários ao minoritário e que lhe sejam proporcionalmente superiores, resta não aprovada a deliberação.

E não aprovada a deliberação, convergindo esse fato com a previsão expressa do inciso V do artigo 600 do CPC, de que apenas e tão somente a sociedade poderá propor essa ação, fica impedido o minoritário de, ut singuli, propor a ação pelo critério da ilegitimidade prevista nesse inciso, ainda que seu intento tenha a ver com a mantença e preservação dos negócios sociais.

Em conseguinte, com o novo texto, cria-se uma proibição que nunca existiu anteriormente. E itere-se que essa mudança nunca foi pretendida por ninguém. Foi fruto da cabeça do legislador, pautado num desconhecimento total da matéria e tornando sem efeito décadas de decisões judiciais que sempre permitiam o acesso ao Judiciário do minoritário, que agora, pela “brilhante ideia” do legislador, passa a ser mero espectador da sociedade.

Perceba-se que a Lei das Sociedades Anônimas, através do parágrafo quarto do artigo 159**********************, preserva o direito de ação do minoritário, em situações onde o mesmo busca a preservação dos negócios sociais e a defesa do interesse da sociedade, ainda que não aprovada deliberação assemblear nesse sentido***********************.

Repita-se que o ocorrido através da edição do inciso V do artigo 600 do atual CPC é um preclaro retrocesso, considerando-se que a denominada ação ut singuli, aqui analisada de forma analógica, é algo recepcionado desde a edição da Lei de Sociedades Anônimas em 1.976. E nossa Jurisprudência e doutrina, por sua vez, também sempre foram lineares em aceitar essa hipótese, porque lógica não há em conclusão diversa.

Situações onde o sócio concorre deslealmente com a sociedade, aproveitando-se de informações, ou ainda em situações de usurpação de oportunidade negocial, ficam desprotegidas pela vontade dos demais sócios omissos e negligentes, quando o legislador deveria ocupar-se de conceder mecanismos aos minoritários, para preservação do negócio social. O bem a ser tutelado, prioritariamente, é a sociedade, e não o interesse ou o desleixo de parte de seus sócios.

Vetar a propositura, pelo minoritário, de ação de dissolução parcial, buscando a exclusão de um dos sócios, nada tem a ver com o hodierno intento de sobrepor-se o interesse da sociedade sobre seus sócios.

Manter-se a legislação no formato atual será regredir de forma inaceitável. Será ainda desfazer todo o trabalho no sentido de preservação da sociedade através do direito constitucional de invocação da tutela jurisdicional ao minoritário, que se revela, muitas vezes, na preservação da própria sociedade. Mas como já lembrava George Bernard Shaw, a “estrada para a ignorância está pavimentada de boas edições”.

Por Roberto de Mello Severo

Site Migalhas – 30 de março de 2.021

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* Dello scioglimento del raporto sociale limitatamente a un sócio.
**  TJSP, apelação cível 217.352-1/7 e TJMG, apelação cível nº 58.092.
*** Dinamarco, Cândio Rangel. Litisconsórcio. 3ª edição, SP, Malheiros Editores, 03/1.996, p. 214/215.
**** Hipótese de não aplicação do artigo 1.085 do Código Civil (inexistência de previsão do contrato social/ estatuto – configurando-se a aplicação do artigo 1.030 do mesmo Código.
***** Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros.
****** Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos. Malheiros Editores, 01.2011, p. 180 e 181.
*******  “A sociedade também deverá fazer-se presente no polo passivo da ação – em litisconsórcio passivo necessário com os sócios -, porquanto é dela a obrigação de pagar os haveres do sócio que é compulsoriamente afastado” (FONSECA, Priscila M. P. Corrêa da, Dissolução Parcial, Retirada e Exclusão de Sócio no Novo Código Civil, 4ª ed., São Paulo. Ed. Atlas, 2007, p. 122-123)
******** “A exclusão de sócio, inclusive majoritário, por falta grave no cumprimento de sua função ou por incapacidade superveniente, pode ocorrer por via judicial e mediante iniciativa da maioria dos demais sócios, deverá ser tomada por todos, com a inclusão da empresa no polo processual, mesmo porque o fato poderá redundar necessária apuração de haveres do sócio excluído” (Adalberto Simão Filho, Adalberto. A Nova Sociedade Limitada, Barueri/SP, Manole, 2004, p. 187).
********* Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos, São Paulo, 2011, p. 182 -183.
********** “Quando do sócio a ser expulso for majoritário, ou o contrato social não contemplar cláusula permissiva, a expulsão será necessariamente judicial. Aqui, o sócio remisso descumpridor de suas obrigações ou desleal deve ser demandado, em ação de dissolução proposta pelos demais e pela sociedade limitada (está será representada, excepcionalmente, pela minoria, ao pleitear a expulsão do sócio majoritário” (Ulhoa Coelho, Fábio. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil, São Paulo. Saraiva. 2003, p. 134).
*********** “A par da exclusão extrajudicial, faculta-se também que o sócio seja excluído pela via judicial, ajuizando-se a ação de dissolução parcial de sociedade. A maioria dos sócios poderá deliberar em assembléia ou reunião de sócios o ajuizamento da ação judicial para expulsão do sócio, sob fundamento de falta grave no cumprimento de suas obrigações ou incapacidade superveniente” (Pereira Calças, Manoel de Queiroz. Sociedade Limitada no Novo Código Civil, São Paulo. Atlas. 2003, p. 107).
************ “Dissolução parcial de sociedade – Exclusão de Sócio (art 1.030 do CC) – Ilegitimidade ativa da sociedade – Quebra da affectio societatis e prática de falta grave no cumprimento das obrigações sociais não demonstrados. (…). 1. A maioria dos sócios é que tem legitimidade para requerer a exclusão de outro sócio, e não a sociedade. (…). 3. Recurso parcialmente provido no tocante à demanda principal (vencido)”. (TJPR, 18ª Câmara Cível, ACi 0462759-2, Assaí, rel. Des. José Carlos Dalacqua, j. 30.4.2008, m.v.).
************* Apelação cível – Dissolução e liquidação de sociedade – Exclusão de sócio por justa causa – Apuração de haveres – Legitimidade ativa ad, causam. No caso em pauta, a prerrogativa para excluir o réu da sociedade, por justa causa, é do sócio remanescente detentor de 50% das quotas sociais. No entanto, além da exclusão do sócio, as autoras pretendem efetuar a apuração dos haveres, razão pela qual se impõe a formação de litisconsórcio ativo entre as sociedades e o sócio remanescente. Nesse passo, em prol do princípio da economia processual e à luz do parágrafo único do art. 47 do CPC, não se mostra prudente extinguir o feito, mas, sim, oportunizar a inclusão, no polo ativo, do sócio M. R. D. – Sentença desconstruída – Apelo provido, em parte. (TJRS, 5ª Câmara Cível, ACi. 70025137084-0, rel. Des. Umberto Guaspari Sudbrack, j. 15.4.2009).

************** Direito empresarial – Sociedade de responsabilidade Limitada – Pedido de dissolução parcial da sociedade e exclusão dos sócios majoritários por alegada perda da affectio societatis – Ausência de prova de justo motivo, apto a caracterizar o acerto da pretendida exclusão – Necessária intimação da sociedade empresária em razão de litisconsórcio necessário, dada a natureza da causa e as personalidade jurídicas distintas de cada sócio e da sociedade que integram – Parcial provimento do recurso de apelação (TJRJ, 14º Câmara Cível, ACi 0350977-37.2008.8.19.0001, rel. Des.Nascimento Póvoas, j. 9.6.2010).

*************** AC. 0044275-72.2011.8.26.0576, ED. 0002689-44.2011.8.26.0224/50000, AG. 0046851-49.2013.8.26.0000, AG. 0267649-81.2012.8.26.0000, AC. 0043936-11.2006.8.26.0602, TJSP – AC 0026023-81.2012.8.26.0577, TJSP – AC 0004940-10.2012.8.26.0318, TJSP – AC 0004940-10.2012.8.26.0318, AC 0074381-34.2004.8.26.0100, TJSP – AC 0012720-83.2011.8.26.0011, TJSP – AC 0026023-81.2012.8.26.0577, AG 0223017-67.2012.8.26.0000, AG 0167562-20.2012.8.26.0000 e AC 0005153-06.2003.8.26.0003.
**************** APL 994040819272.
***************** REsp nº 80.481
17/12/1.999
SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA.DISSOLUÇÃO PARCIAL.LEGITIMIDADE PASSIVA.
– Na ação de dissolução parcial, a sociedade deve figurar no pólo passivo da demanda. Recurso especial conhecido e provido para anular o processo a partir do saneamento da causa, prejudicadas as demais questões.
****************** REsp 735.207-BA (11/04/2.006)
Dúvida não há na jurisprudência da Corte sobre a necessidade de citação de todos os sócios remanescentes como litisconsortes passivos necessários na ação de dissolução de sociedade.
2. Embora grasse controvérsia entre as Turmas que compõem a Seção de Direito Privado desta Corte, a Terceira Turma tem assentado que não tem a sociedade por quotas de responsabilidade limitada qualidade de litisconsorte passivo necessário, podendo, todavia, integrar o feito se assim o desejar.

******************* REsp nº 467085/PR e REsp nº 1.400.264/RS.
******************** Nas hipóteses de não aplicação do artigo 1.085 do Código Civil.
********************* Agravo Regimental nº 1.203.778 (STJ):
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO EMPRESARIAL. EXCLUSÃO DE SÓCIO POR FALTA GRAVE NO CUMPRIMENTO DE SUAS FUNÇÕES. (…)
Não se mostra razoável impor, nem compatível com a sistemática informal de regência das sociedades por cotas, exigir maioria do capital, maioria de sócios ou ainda a realização de reunião de quotistas para deliberar sobre a possibilidade de ajuizamento de ação de dissolução de sociedade/exclusão de sócio/responsabilização de sócio. Precedentes. Agravo Regimental improvido.
********************** Art. 159. Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia-geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio.(…) § 4º Se a assembléia deliberar não promover a ação, poderá ela ser proposta por acionistas que representem 5% (cinco por cento), pelo menos, do capital social.
*********************** Nas hipóteses de não aprovação de propositura, pela sociedade, de ação de responsabilidade em face de administrador (ação ut universi), poderá o acionista proponente atuar em substituição processual, para propor essa ação, visando preservar os interesses sociais e a preservação da Companhia.

Limitadas e debêntures

O Brasil poderá, se aprovado o recente Projeto de Lei – PL nº 3.324/2.020 que está em trâmite no Senado, sair de décadas de atraso com a possibilidade de emissão de debêntures por sociedades limitadas e cooperativas. E pra isso, compreender e desmistificar debêntures é importante.

Essa possibilidade também estava sendo debatida no Projeto do Novo Código Comercial.

Debêntures nada mais são que títulos (obrigações) de dívida de médio e longo prazos (mínimo dois anos), que podem ser emitidas por sociedades anônimas de capital aberto ou fechado.

Dito de outra forma, são nada menos que contratos onde a empresa (sociedade anônima), que precisa de recursos, busca investidores, emitindo as debêntures ao mesmo (documento representativo da dívida), já especificando a data do vencimento e a taxa de juros que será, em regra, bem mais vantajosa que as aplicações financeiras tradicionais. Ganham ambas as partes.

Importante ainda lembrar que no que se denomina “bookbuilding”, o investidor poderá enviar suas ordens, contendo as condições que aceita (taxa de remuneração e prazo) para aquisição das debêntures, o que permite juros acima da taxa legal de juros (01%) – o que o investidor não poderia fazer de outra forma sem que houvesse a ilegalidade da operação.

O investidor ganha mais do que deixando seu dinheiro em aplicações usuais e já sabe o valor que irá receber – sem riscos de oscilação, e a empresa economiza, porque buscar esses mesmos recursos em bancos teria um custo muito elevado.

Para que se tenha uma ideia da importância disso, de acordo com dados da ANBIMA – Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais, apenas em 2.019 a captação de recursos por debêntures das anônimas representou R$117,4 bilhões, dinheiro que veio direto de investidores, sem interferência de bancos. Mas essa possibilidade, hoje, está restrita a sociedades anônimas.

Os bancos não podem emitir debêntures, mas podem fazer algo semelhante chamado de emissão de CDBs. O efeito é o mesmo.

E por qual razão as limitadas e sociedades cooperativas nunca foram autorizadas a emitir debêntures? A resposta passa por algumas informações preliminares.

No Brasil, 98% das sociedades não são anônimas, sendo essas uma minoria. De acordo com dados da Receita Federal, temos cerca de 3,5 milhões de sociedades limitadas ativas no país, contra apenas 1.040 sociedades anônimas, ficando essa preclara minoria com direitos e benefícios que deveriam ser de todas.

Das vinte maiores sociedades do país, cinco são cooperativas. E volta-se à indagação: – qual a lógica de se proibir limitadas e cooperativas de captar recursos emitindo debêntures, autorizando apenas as anônimas? A resposta é lobby das instituições financeiras.

A dependência de instituições financeiras para sociedades limitadas e cooperativas é de tal forma arraigada à nossa cultura, que será necessária uma divulgação massiva da importância desse projeto, porque mesmo após aprovado, irá demorar para ser inserido na mentalidade do empresariado não familiarizado com essa modalidade.

As sociedades anônimas não necessariamente dependem de instituições financeiras para captar recurso. Já limitadas e cooperativas, que poderiam fazer o mesmo são, atualmente, reféns dos bancos.

Mas grande parte da doutrina sempre concordou com a emissão de debêntures por todo tipo de sociedade. Ocorre que essa emissão privada passa pelas Juntas Comerciais, que barram o pedido de registro e arquivamento dessa emissão. Atraso atrás de atraso.

Importante ainda lembrar que existe a possibilidade de essas debêntures, em determinados casos, serem conversíveis em cotas da empresa emissora, o que depende da aceitação do investidor e das vantagens envolvidas na operação.

Debêntures em sociedades limitadas são admitidas em outros países há muito tempo. Inglaterra, Estados Unidos e Itália, dentre vários outros, a utilizam em larga escala. Mas como dizia Tom Jobim, “O Brasil não é para principiantes”. Aqui tudo é mais difícil.

Em tempos de pandemia, principalmente, a aprovação desse projeto em tempo curto ajudaria e muito a economia, e findaria com uma situação de desigualdade que não tem qualquer justificativa de existir.

Por Roberto de Mello Severo

Folha de Londrina – 14 de agosto de 2.020.

250 Anos: – o Gênio de uma ópera só

“Nunca se escreveu nada tão sem nexo e desagradável. Não tem ideia melódica e nenhum traço de originalidade. A orquestra divaga num ruído perpétuo, sem arte e sem beleza…”. Esta foi uma das primeiras críticas feitas a Beethoven por um jornal de Berlim, quando ele tinha 36 anos e já estava praticamente surdo.

Em dezembro deste ano, mais precisamente em 17 de dezembro, comemoram-se 250 anos do nascimento de Beethoven. Em 2.016 comemoramos 200 anos do polêmico Wagner e de Verdi e em 2.006 comemoramos 250 anos de Mozart. Mas essas comemorações estão aquém do que se terá este ano.

Beethoven, chamado de o gênio de Bonn, foi notadamente um dos maiores ou o maior expoente da música, que não deve ser chamada de erudita, mas simplesmente de música.

Feio, plebeu, rabugento, arrogante, destemperado, fraco em ortografia e matemática, com dedos curtos e grossos, filho de pai alcóolatra e sem quaisquer características “germânicas” – era descendente de africanos, Beethoven reunia, à época, todas as condições para uma vida de pouco sucesso.

Seu pai, músico frustrado, resolve que Beethoven seria o novo Mozart, e acaba com a infância do filho, que é obrigado a estudar música em tempo integral.

Em 1.792, Beethoven se torna aluno de Franz Joseph Haydn, um dos mais importantes compositores do período clássico, ao lado de Mozart, que recebe mal o aluno temperamental e o chama de Grão Mogol, derivação de mongol. Beethoven acha aquele que chama de “a Velha Peruca” péssimo professor, e contrata outro professor paralelo – Johann Schenk.

A verdade era que Haydn se recusava a reconhecer os dons de Beethoven, razão pela qual nunca se deram bem. Já em 1.797, Beethoven se encontra com Mozart – que já era o grande expoente da música europeia, que ignora o rapaz. Beethoven então o desafia a lhe dar um tema para que improvisasse.

Após 15 minutos, Mozart afirma: – Prestem atenção nesse rapaz, pois ele ainda fará com que o mundo fale a seu respeito.

Surdo aos 30 anos (época em que fez suas maiores criações), Beethoven incomodava os vizinhos e mudava-se constantemente, porque batia os pés com força no chão para marcar o compasso e, quando não encontrava uma harmonia correta para a obra que estava compondo, jogava um balde de água na cabeça, causando vazamento no andar de baixo. Mas surdo, não entendia a razão das reclamações.

Aos que possam dizer que desconhecem as obras de Beethoven, basta lembrar da música do gás, conhecida como a bagatela “Pour Élise” ou Für Elise – o correto é “Pour Thereze” – Thereze Malfatti que, como muitas, recusaram-se a se casar com Beethoven.

Beethoven escreveu apenas uma ópera: – Fidelio. E é importante que se diga que o fez apenas por fins financeiros. O plágio, como em muitos, também rondou Beethoven – talvez até do próprio Haydn.

Contrariamente a Mozart, que foi enterrado numa vala comum, ou a Shostakovitch, que viveu em desgraça pública por causa de Stalin, Beethoven teve todas as honras que lhe cabiam em vida e após.

O mundo civilizado deverá comemorar esse evento de forma ampla. Seria recomendável que também aqui isso fosse feito, como forma de implementar o velho discurso de difundir a música clássica e como meio de acabar com o mau uso do adjetivo “erudita”.

E lembrar Beethoven abre portas para músicos nacionais como Henrique Oswald, Alfredo Napoleão e João Carlos Martins – nem se diga de Villa-Lobos, além de tantos outros, desconhecidos aqui e famosos lá fora, como sempre. Portas a serem abertas.

Ficam aqui as homenagens ao saudoso amigo Maestro Sizenando Lázaro Moura, que me ensinou a abrir as portas que nunca se fecham.

Por Roberto de Mello Severo

Folha de Londrina – 16 de janeiro de 2.020.

Do poder e de quem é o poder

Quando Sebastian Brant escreveu a “Nau dos Insensatos”, perto de 1.521 (o livro é realmente imperdível e está atual como nunca), ele já dizia que “todos os insensatos sofrem do mesmo mal – tudo o que lhes é novo lhes agrada, mas logo perdem o interesse e passam a querer outra coisa”.

Estamos próximos a uma eleição geral e o foco é apenas a presidência. Iremos debater, discutir, assistir embates televisivos sobre essa eleição presidencial. Faremos discussões acaloradas. Dúvidas e incertezas diversas.

Os brasileiros agem como se a pessoa do presidente fosse a panaceia dos problemas atuais, sejam eles a corrupção, pobreza, economia falida, etc. Mas isso nada mais é que a maior prova de nossa imaturidade democrática, cultural e política. Isso porque, a despeito de não vivermos um parlamentarismo, criamos, com a Constituição de 1.988, algo muito próximo a isso.

Quando todos achavam que a Constituição estava sendo debatida no Plenário do Congresso – o que era uma bobagem, o fato era que, em uma sala chamada “Comissão Diretiva” ditava-se o real texto da Constituição. E o nome “Diretiva” vinha copiado da denominada “Constituição Diretiva” de Canotilho, de Portugal – pós Revolução dos Cravos, que copiou a Constituição da antiga União Soviética que, como todos sabem, não deu muito certo, nem uma, nem outra.

E essa “Comissão Diretiva” era formada por políticos que, até hoje, estão no cenário nacional. Em outras palavras, criou-se o chamado “Poder de Eminência”, que seria ótimo se tivéssemos congressistas de primeiro nível. O Congresso se projetaria para fora do Poder Governamental, e seria o grande fiscalizador do Poder Executivo, além de censor e limitador do Executivo.

Isso soa bem na Inglaterra, na Alemanha, Suécia e em outros países com um nível ético-sócio-cultural elevado. No Brasil, os últimos anos nos mostraram que isso não ocorreu bem assim.

Trump tentou acabar com o “Obama Care” – o Legislativo não deixou. E vetou várias outras coisas. Paolo Gentiloni renunciou ao cargo de Primeiro Ministro da Itália, após ver que a direção do Legislativo lhe era contrária. Até mesmo Obama colecionou diversos fracassos, porque era vetado pelo Legislativo.

E o que isso tem a ver com o Brasil?

O exemplo Dilma mostrou bem o que significa o cargo de presidente. Fica enquanto o Legislativo disser que fica (certo ou errado). Collor idem. O brasileiro até hoje não entendeu que a eleição que importa é a do Legislativo. A do Presidente, triste que seja assim, é fantoche.

Fazem muitos discursos de seriedade. Honestidade. Mas principalmente sobre honra.

Na ópera de Verdi, o burlão Falstaff, querendo ser eloquente como nossos candidatos, já dizia: “– Que gozação. A honra pode encher sua pança? Não. A honra pode reparar suas canelas? Não pode. (…) O que é então? Uma palavra. O que há nesta palavra? Há ar que voa.” E é “ar que voa” tanto o discurso dos candidatos a presidente, como a importância do presidente frente ao Poder Legislativo.

No Brasil, um presidente que não se curve ao Legislativo, ou terá um mandato medíocre, ou será colocado para fora. Devíamos ficar preocupados mais com a análise e votação em nossos congressistas – mas isso é mais complicado e enfadonho. Não feito isso, pouco importa quem será o novo presidente. A diversão está na escolha do presidente.

Vendem a ideia de que o próximo presidente atendará aos nossos anseios. E dará rumo ao país e esperança ao povo.

Mas o mais provável é que o próximo presidente seja como Ivan Matviéitch, de Dostoiévski. Será o centro das atenções de todos. Todos os olhos voltados para ele. Completo sucesso. Mas, em verdade, quase totalmente tragado por um enorme crocodilo em pleno zoológico (só com a cabeça de fora). Totalmente inebriado pela fama momentânea, olvidando que está prestes a ser engolido.

E esse crocodilo se chama Congresso Nacional. Pensar no presidente e esquecer de mudar os congressistas é voltar aos ensinamentos de Brant da idade média, que lembrava que “iguala-se aos parvos aquele que diz: – não pensei que isso pudesse acontecer”.

Por Roberto de Mello Severo

Folha de Londrina – 10 de maio de 2.018.

Dos candidatos sem partido

Tramita no STF, ao largo da população e de parte da imprensa, o Recurso Extraordinário com Agravo nº 1.054.490, que, se provido, poderá alterar completamente o cenário político do país, porque criará a possibilidade de candidatos em eleições, desvinculados de qualquer partido – candidaturas autônomas.

Pela Constituição Federal – CF (inciso V do §3º do art. 14), a filiação partidária é requisito para uma candidatura. No entanto, essa “condição” constitucional estaria em desacordo com as diretivas da Declaração Universal dos Direitos do Homem da ONU, também contrariando a Convenção de Viena dos Direitos dos Tratados e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, além do Pacto de San José.

É fato que “tratados” assinados pelo Brasil, mas que não se submeteram ao §3º do artigo 5º da CF (votação em dois turnos, por três quintos em cada casa do Congresso – vide Emenda Constitucional 45/2.004), são apenas normas “supralegais”, não tendo poder de se sobrepor à nossa Constituição (derrogação).

Mas há uma pedra no sapato, e se chama Pacto de San José da Costa Rica. Isso porque esse pacto foi promulgado pelo Brasil pelo Dec. 678, de 06.11.1992, ou seja, antes de existir, na Constituição, a exigência do §3º do artigo 5º (de 2.004). Dito de outra forma, o Pacto de San José teria status compatível com a Constituição, de modo que os pontos da Constituição contrários ao Pacto deveriam ser desconsiderados – derrogados.

Se analisado esse Pacto, os incisos I e II do artigo 23 não preveem a filiação partidária como motivo para permitir uma candidatura. Se o Pacto não condiciona, a Constituição também não o poderia. Logo, deveria ser considerado derrogado o inciso V do §3º do art. 14 da CF.

Os defensores dos partidos alegam que esse Pacto, por ter sido recepcionado pelo Congresso em 1.992, deveria ser novamente referendado, em razão da Emenda Constitucional 45/2.004.

E como pensa quem deve pensar sobre o assunto, que é o STF? Muitos devem se recordar que a previsão de prisão civil do depositário infiel, prevista no inciso LXVII do artigo 5º da CF, deixou de ser aplicada em razão da posição do STF, de desconsiderar essa norma e aplicar o Pacto de San José (HC nº 84.585 e REs nº 466.343 e 349.703), tornando sem efeito a Constituição neste ponto.

Mantido esse entendimento pelo STF, e estarão livres as pessoas para se candidatarem sem partido. A propósito, o parecer nº 22.790, de outubro de 2.017, oriundo do Ministério Público Federal, assinado nesse processo no STF pela Procuradora Geral Raquel Dodge, é exatamente nesse sentido. Atualmente, houve declaração de repercussão geral, aguardando-se designação de pauta de julgamento.

É inegável que caberá ao STF um juízo de conveniência política. E também devem ser virados os olhos para as PECs 07/2.012 e 06 e 16 de 2.015, que também preveem o chamado “candidato sem partido”, ainda que pendente de resultado no STF.

O fato é que o Brasil é um dos poucos países que ainda se agarra aos “partidos”. Macron foi eleito na França sem pertencer a nenhum partido, assim como Gauck na Alemanha. Apenas 09% dos países no mundo impedem candidatos sem partido.

Essa inovação permitiria que a sociedade organizada se livrasse dos grilhões dos mandantes dos atuais partidos, e pudessem estruturar candidaturas livremente. Ou mesmo um cidadão isolado poderia iniciar sua empreitada. Bismarck já lembrava que “Um grande estado não pode ser governado com base nas opiniões de um partido”.

Talvez a solução para os escândalos políticos esteja muito próxima, e passe por apenas seis votos do STF.

Por Roberto de Mello Severo

Folha de Londrina – 22 de fevereiro de 2.018

Da arte e da ciência de se andar pra trás

O Brasil possui curiosidades que, talvez, não tenham qualquer chance de ser encontradas em outros países. Começa-se um debate enorme – com manifestos públicos – sobre um projeto de Lei de 2.009, que prevê a mera atualização da nossa Lei de Contra Abuso de Autoridade.

E essa lei (nº 4.898), diga-se de passagem, foi assinada em 1.965, em plena ditadura militar, pelo então presidente Castelo Branco. Por si só o fato é pitoresco, porque todos sabem que a ditadura pouquíssimas vezes cumpriu o texto legal, a despeito da iniciativa de se fazer uma lei dessa estirpe, numa ditadura, ser altamente elogiável. E foi feita pelos militares, para se protegerem dos próprios militares – seus pares, cientes que eram dos efeitos de se dar muito poder a uma pessoa.

O debate que surge agora é se a votação desse projeto de lei irá ou não prejudicar a denominada Operação Lava-Jato. Antes da resposta, são importantes algumas considerações.

Impedir o abuso de autoridade, há séculos, é objeto de preocupação das sociedades constituídas. Montesquieu já lembrava dos riscos de se dar muitos poderes a um homem só.

A Constituição dos EUA é expressivamente influenciada pela ideia de limites de poder (checks and balances). Exemplo claro disso está na Quinta Emenda da Constituição Federal dos EUA (que entrou em vigor em 1.789) – “Pleading the Fifth”, que estabelece, como regra matriz, a total vedação de qualquer modalidade de abuso de autoridade. A Constituição inglesa não possui essa nossa formatação de divisão plena de poderes, como há no Brasil. Contudo, existe uma preclara separação de funções e, mais que tudo, estabelecimento de limites rígidos àqueles que exercem qualquer modalidade de poder, sempre em atenção ao devido processo legal.

Basta que se recorde que a Magna Carta de 1.205, que serviu para limitar poderes do monarca, estabelecendo que até mesmo o rei estava sujeito às leis, e não o inverso.

Carlos I, na Inglaterra, por querer centralizar o poder em si – alegando a grande baboseira do direito divino, acabou por gerar uma enorme guerra civil (envolvendo o Parlamento), que durou de 1.642 a 1.649. E o rei perdeu não só a guerra, como o poder despótico.

E de onde vem esse projeto de lei? Enganam-se – profundamente – aqueles que pensam que vem dos investigados na Lava-Jato. Esse projeto de lei é oriundo de uma Comissão de Juristas que, em 2.009 (e não agora), elaboraram um ajuste da nossa atual legislação aos patamares dos países de primeiro mundo. Dentre esses juristas está o aclamado Rui Stocco e o atual ministro do STF Teori Zavascki, entre outros.

Em outras palavras, não vamos inovar em nada. Vamos apenas nos alinhar aos mais elevados conceitos de combate à tirania.

E a quem assusta essa mudança na lei? Se analisados os incontáveis artigos e manifestações de membros do Ministério Público e do próprio Judiciário favoráveis à mudança, é notório que, para aqueles que agem dentro dos limites da lei, nada irá se alterar. Absolutamente nada.

Mas, paralelamente a esse debate, está passando despercebida a tentativa, de parte dos procuradores da Lava-Jato, de implantar o chamado “Teste de Integridade do Agente Público”, que também é um projeto de lei, onde agentes infiltrados poderão assediar outros servidores, simular propostas, filmar e gravar tudo para, numa eventual aceitação dessa proposta (feita indevidamente e insistentemente por esse “infiltrado”), ser essa indigitada pessoa processada e presa.

Nem mesmo a Gestapo nazista, quando definiu a “Verschärfte Vernehmung”, que consistia nas quatro regras básicas de interrogatório e abordagem de “suspeitos”, permitia isso. Aliás, buscar a abordagem para a auto-incriminação do abordado era o único ponto proibido, por questões éticas. No mais, até as torturas mais absurdas era permitidas.

Claro que os nazistas não seguiram essa regra – eram avessos a isso. Mas tiveram a decência de assumir que essa postura era reprovável, abusiva e deveria ser evitada. Agora, aproveitando uma operação que atende aos anseios do povo brasileiro – e ao crédito dado a eles, tentam não só impedir a atualização da vetusta lei de 1.965 (fruto de intensos estudos), como ousam querer implantar algo que nem a Gestapo teve coragem de fazer por escrito.

Lewis Carrol, nos textos de Alice, mostra a rainha de copas bradando: – “Primeiro a sentença, depois o veredicto”, eterna reprodução dos abusos vindos daqueles que detêm certo grau de poder. Salazar, enquanto ditador de Portugal, citava que “autoridade e liberdade são dois conceitos incompatíveis… Onde existe uma não pode existir a outra”.

Existem as ditaduras declaradas, e aquelas “brancas”, onde um grupo se projeta acima dos demais, com poderes exacerbados para fazer a “moralização” de acordo com seus conceitos subjetivos.

A Polícia Federal, que é quem efetivamente faz mais de 90% das investigações da Lava-Jato (os procuradores da república pegam o trabalho formatado), não está se mobilizando contra essa mudança de lei. Aliás, a polícia em geral nunca teve qualquer tipo de blindagem e sempre respondeu normalmente, em casos de falhas. Por que outros não? Cuidado com o que se deseja…

Por Roberto de Mello Severo

Folha de Londrina – 16 de dezembro de 2.016.

Nada há de novo sob o sol

Depois de mais de três mil anos, a frase de Salomão, repetida no Eclesiastes, nunca pareceu tão atual. O cenário pós- ataque de Paris deu a oportunidade que parte dos países ocidentais precisava, para estancar a política de recepção de refugiados vindos principalmente do norte da África.

E, se não fosse o suficiente, abriu espaço para a intolerância religiosa, mais propriamente com muçulmanos, dando viés de guerra religiosa. Mas isso não é novidade.

Quando o Papa Urbano II, em 1.205, convocou a todos para o que se tornaria a 1ª Cruzada, deu contornos religiosos para seu real intuito, que era apenas ajudar o imperador Alexios I no império Bizantino. E os cristãos caíram no conto, e o que fizeram por cerca de 200 anos é de deixar o Estado Islâmico frustrado. E fizeram supostamente por ideologia religiosa.

O que o francês Gilles de Rais cometeu nas Cruzadas faz de Jihad John um personagem caricato. Mas a questão é: – qual a semelhança entre o antigo e o atual?

E a resposta é a completa ignorância dos que atacam, e dos que são atacados. Se levássemos a ferro e fogo os textos bíblicos, ainda estaríamos matando pessoas de outra religião (Deuteronômio 20:13) e vendendo filhas como escravas (Êxodo 21:7).

Passamos por textos que nem mesmo sabemos se foram escritos daquela forma, já que os monges, pelo palimpsesto, tudo apagavam para reescrever da forma como queriam. Tivemos tradutores da Bíblia que traduziam aramaico sem nem mesmo entender aramaico. E no islamismo não é diferente.

Das possíveis transliterações, talvez as virgens do paraíso sejam apenas uvas passas brancas (o texto correto é o hebraico hur, e não houris).

Mas não há, nunca houve, nem nunca haverá uma guerra religiosa. Guerras existem por disputa econômica e de poder. E criminosos são criminosos, independentemente da farda, da bandeira ou da camisa do time que usam.

Os inimigos não possuem nacionalidade. Os ataques na França foram feitos por franceses, criminosos franceses. A diáspora que vemos hoje é de muçulmanos fugindo de um grupo criminoso, que finge ser a religião o mote do combate, como fizemos nas Cruzadas. E tão somente isso. Ocorre que toleramos os absurdos que ocorrem lá, desde que não nos sujem aqui.

Já são mais de 240 mil mortos na Síria. Países como o Mali estão assolados pelo Estado Islâmico. Mas números assim são a estatística de que Stalin se gabava.

Nos anos 70 e 80, milhares de pessoas vindas do Vietnã, Camboja e Laos buscaram refúgio no Ocidente, principalmente em razão da Guerra do Vietnã. Enquanto a Europa recebia de certa forma essas pessoas, o então presidente dos EUA, Harry Truman sofria para ver desfeitas as barreiras que o Congresso impunha à recepção desses refugiados.

E o fantasma da invasão de pessoas de culturas diferentes, que tanto justificavam as barreiras, nunca se concretizou. Pelo contrário. Também tivemos uma enorme crise de refugiados pós Segunda Guerra. E a solução foi adequar as legislações de fronteira.

Já são mais de quatro milhões de refugiados da Síria. Essa diáspora supera a da Indochina, a da Segunda Guerra. Supera as diásporas gregas, a hebraica. Supera absolutamente tudo isso.

Não existem religiões violentas. Existem pessoas violentas. E não se pode permitir que um evento capitaneado por facínoras confundam as pessoas e leve ao desalento de tantos e a um preconceito religioso – de novo. As maiores vítimas do Estado Islâmico, curiosamente, são os muçulmanos.

Por séculos, milhares de cristãos morreram nas mãos de outros cristãos, sob falsos pretextos religiosos, o que não torna a religião a culpada. Como lembra Aristóteles, “um povo que não aprende com a história está fadado a repeti-la”.

Por Roberto de Mello Severo

Folha de Londrina – 09 de dezembro de 2.015.