Espelho

O noticiário local dos últimos dias foi tomado de assalto pela informação de que um pároco teria sido apreendido por atos obscenos em via pública. A despeito de todo o rol de notícias abjetas que nos rebaixam diariamente, e que informam nossa incapacidade de viver em sociedade, a população voltou seu “olho crítico” para um fato que, se não fosse a posição do apreendido, não teria significado público algum.

O primeiro ponto que se obtém desse fato é nossa mediocridade para nos preocuparmos com o que realmente interessa. Isso porque, em geral, não temos conduta alguma para tomar medidas sobre fatos realmente sérios e que interferem em nossa vida em sociedade. Em outras palavras, usamos fatos vexatórios dos outros, como válvula de escape de nossos problemas diários.

Em segundo lugar, mostramos nossa habilidade para potencializar problemas alheios. E o fazemos com maestria, pois visualizar a fraqueza dos outros nos faz melhores quando nos deparamos com nosso inconsciente. E a certeza de nossas fraquezas e defeitos é momentaneamente superada pela constatação de que as pessoas que – aparentemente – não estariam sujeitas a esses infortúnios são também suscetíveis aos mesmos.

Machado de Assis, quando escreveu o conto “O Espelho” (1.882), falava no homem como sendo duas metades, duas almas. Uma delas, a interna, “olhava de dentro para fora”, e a externa, que “olha de fora para dentro”, era formada pelos valores exteriorizados – um reflexo da própria pessoa. A quem apenas busca seu reflexo, a parte mais valiosa da vida acaba sendo a “alma externa”. Ferir essa “alma” seria eliminar a própria vida, quando, na verdade, isso não passa de um delírio.

Assim, o que somos fica em segundo plano, frente ao que buscamos “projetar ser”. E a exigência e curiosidade pública não autorizam falhas na alma externa, na imagem projetada para seus espectadores. E esses espectadores, sempre ávidos a julgar, são irremitentes.

Mas Machado não foi o único a se debruçar sobre espelhos. O cineasta russo Andrei Tarkovski, quando dirigiu o filme “O Espelho” (1.974), mostrou que buscamos sempre desconstruir as coisas para podermos compreendê-las. Mas o fazemos cientes que não saberemos remontar. E destruímos, a pretexto de entender.

A desconstrução de um ser humano nunca nos deixará satisfeitos com o resultado. Isso porque, se para o notório Barão de Itararé, o “homem que se vende recebe sempre mais do que vale”, a verdade da realidade humana pode ser explicada por Bobbio, para quem os homens são “possuidores de poucas virtudes adquiridas e de muitos vícios naturais, desarmados diante das tentações da ambição, da riqueza e do poder.”

Mas nossa predisposição para julgar, destruir imagens, nomes ou a história de terceiros é algo inato. Traça-se um divisor de águas e apaga-se todo um histórico de bons propósitos. Nada mais vale. A irrepreensível moral dos espectadores lhes autoriza tecer sínteses de condenação, tudo dentro da inabalável sensação de dever cumprido.

Na verdade, sempre seremos sombras de um Robespierre, e sempre teremos um Dr. Guillotin à nossa disposição. O capítulo 25 do Evangelho de Mateus lembra os reclames do encarcerado que, para Carnelutti, era “essencialmente, um necessitado”. Do ruim para o bom. Fica ao pároco a lembrança das necessidades e desrespeitos aos encarcerados, eternos esquecidos. Aos demais, fica a pergunta: – ainda há duvidas de que houve excessos na “operação”?

No mais, cessem os risos. Fique a cada qual a imagem de seu próprio espelho (se é que a querem enxergar). À Justiça os demais fatos. E a propósito de Mateus, seria oportuno lembrar a eterna trave no próprio olho. Mas Fernando Pessoa vem mais a calhar: “Toda gente que eu conheço e fala comigo / Nuca sofreu um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho / Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida (…) /Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”

Por Roberto de Mello Severo

Folha de Londrina – 23 de maio de 2.010.

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