Da arte e da ciência de se andar pra trás

O Brasil possui curiosidades que, talvez, não tenham qualquer chance de ser encontradas em outros países. Começa-se um debate enorme – com manifestos públicos – sobre um projeto de Lei de 2.009, que prevê a mera atualização da nossa Lei de Contra Abuso de Autoridade.

E essa lei (nº 4.898), diga-se de passagem, foi assinada em 1.965, em plena ditadura militar, pelo então presidente Castelo Branco. Por si só o fato é pitoresco, porque todos sabem que a ditadura pouquíssimas vezes cumpriu o texto legal, a despeito da iniciativa de se fazer uma lei dessa estirpe, numa ditadura, ser altamente elogiável. E foi feita pelos militares, para se protegerem dos próprios militares – seus pares, cientes que eram dos efeitos de se dar muito poder a uma pessoa.

O debate que surge agora é se a votação desse projeto de lei irá ou não prejudicar a denominada Operação Lava-Jato. Antes da resposta, são importantes algumas considerações.

Impedir o abuso de autoridade, há séculos, é objeto de preocupação das sociedades constituídas. Montesquieu já lembrava dos riscos de se dar muitos poderes a um homem só.

A Constituição dos EUA é expressivamente influenciada pela ideia de limites de poder (checks and balances). Exemplo claro disso está na Quinta Emenda da Constituição Federal dos EUA (que entrou em vigor em 1.789) – “Pleading the Fifth”, que estabelece, como regra matriz, a total vedação de qualquer modalidade de abuso de autoridade. A Constituição inglesa não possui essa nossa formatação de divisão plena de poderes, como há no Brasil. Contudo, existe uma preclara separação de funções e, mais que tudo, estabelecimento de limites rígidos àqueles que exercem qualquer modalidade de poder, sempre em atenção ao devido processo legal.

Basta que se recorde que a Magna Carta de 1.205, que serviu para limitar poderes do monarca, estabelecendo que até mesmo o rei estava sujeito às leis, e não o inverso.

Carlos I, na Inglaterra, por querer centralizar o poder em si – alegando a grande baboseira do direito divino, acabou por gerar uma enorme guerra civil (envolvendo o Parlamento), que durou de 1.642 a 1.649. E o rei perdeu não só a guerra, como o poder despótico.

E de onde vem esse projeto de lei? Enganam-se – profundamente – aqueles que pensam que vem dos investigados na Lava-Jato. Esse projeto de lei é oriundo de uma Comissão de Juristas que, em 2.009 (e não agora), elaboraram um ajuste da nossa atual legislação aos patamares dos países de primeiro mundo. Dentre esses juristas está o aclamado Rui Stocco e o atual ministro do STF Teori Zavascki, entre outros.

Em outras palavras, não vamos inovar em nada. Vamos apenas nos alinhar aos mais elevados conceitos de combate à tirania.

E a quem assusta essa mudança na lei? Se analisados os incontáveis artigos e manifestações de membros do Ministério Público e do próprio Judiciário favoráveis à mudança, é notório que, para aqueles que agem dentro dos limites da lei, nada irá se alterar. Absolutamente nada.

Mas, paralelamente a esse debate, está passando despercebida a tentativa, de parte dos procuradores da Lava-Jato, de implantar o chamado “Teste de Integridade do Agente Público”, que também é um projeto de lei, onde agentes infiltrados poderão assediar outros servidores, simular propostas, filmar e gravar tudo para, numa eventual aceitação dessa proposta (feita indevidamente e insistentemente por esse “infiltrado”), ser essa indigitada pessoa processada e presa.

Nem mesmo a Gestapo nazista, quando definiu a “Verschärfte Vernehmung”, que consistia nas quatro regras básicas de interrogatório e abordagem de “suspeitos”, permitia isso. Aliás, buscar a abordagem para a auto-incriminação do abordado era o único ponto proibido, por questões éticas. No mais, até as torturas mais absurdas era permitidas.

Claro que os nazistas não seguiram essa regra – eram avessos a isso. Mas tiveram a decência de assumir que essa postura era reprovável, abusiva e deveria ser evitada. Agora, aproveitando uma operação que atende aos anseios do povo brasileiro – e ao crédito dado a eles, tentam não só impedir a atualização da vetusta lei de 1.965 (fruto de intensos estudos), como ousam querer implantar algo que nem a Gestapo teve coragem de fazer por escrito.

Lewis Carrol, nos textos de Alice, mostra a rainha de copas bradando: – “Primeiro a sentença, depois o veredicto”, eterna reprodução dos abusos vindos daqueles que detêm certo grau de poder. Salazar, enquanto ditador de Portugal, citava que “autoridade e liberdade são dois conceitos incompatíveis… Onde existe uma não pode existir a outra”.

Existem as ditaduras declaradas, e aquelas “brancas”, onde um grupo se projeta acima dos demais, com poderes exacerbados para fazer a “moralização” de acordo com seus conceitos subjetivos.

A Polícia Federal, que é quem efetivamente faz mais de 90% das investigações da Lava-Jato (os procuradores da república pegam o trabalho formatado), não está se mobilizando contra essa mudança de lei. Aliás, a polícia em geral nunca teve qualquer tipo de blindagem e sempre respondeu normalmente, em casos de falhas. Por que outros não? Cuidado com o que se deseja…

Por Roberto de Mello Severo

Folha de Londrina – 16 de dezembro de 2.016.

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